Não era possível que ele realmente a estivesse olhando daquela forma. Há quase cinco minutos, porém, ele parecia fitá-la com concentração absoluta, como se ela fosse a única mulher naquele vagão de metrô. Ela já desviara os olhos, girara a cabeça para esconder o rosto, tentara enterrar-se sob o livro que carregava, mas, ao voltar a encará-lo, o olhar do homem mantinha-se nela.
A princípio, ao perceber o sujeito e confirmar ser o objeto de sua devotada atenção, sentira-se irritada. Avaliou estar sendo medida, estudada, julgada – o de hábito. Gradualmente, contudo, notou que a expressão do outro não era nenhuma daquelas normalmente associadas aos olhares que recebia: suas sobrancelhas não estavam congeladas num franzir crítico, seus lábios não traziam um sorriso de deboche e seus olhos não traíam reprovação. Ele apenas… a observava. Atentamente. Durante um microssegundo ela tivera mesmo a impressão de captar um leve aceno de cabeça, como se ele estivesse aprovando o que via.
Isto não era possível, claro. Ninguém a “aprovaria” apenas ao vê-la. Conversando, talvez – caso ignorassem seus dentes amarelos e irregulares -, mas não simplesmente pelo olhar.
Não era bonita e sabia disso. Sempre soubera. No passado, isto a incomodara muito. Ora, “incomodara”! Muito mais que isso: a fizera sofrer. Agora, no entanto, era apenas um fato de sua vida. Era feia e pronto. Não pensava mais nisso do que pensava, por exemplo, que sua cor favorita era o amarelo.
Para começo de conversa, era grande demais. Não alta, mas grande, com seus ombros largos e braços fortes. Com um metro e oitenta e oito centímetros de altura, sempre estivera duas ou três cabeças acima de praticamente todos os seus colegas de escola, sentindo-se constantemente aberta ao escrutínio alheio, como se a natureza a tivesse criado alta para expor ao mundo seu rosto nada gracioso.
E que o homem no metrô continuava a estudar.
Crescera ouvindo que “beleza era subjetiva” – algo que apenas crianças feias escutavam. Estava certa, porém, que não havia subjetividade que a tornasse bela. O nariz grosseiro, que herdara do pai, terminava num bulbo rosado e dividido ao meio por um vinco que apenas ressaltava seu tamanho – e que contrastava com os lábios excessivamente finos que por muitos anos ela tentara aumentar com delineadores e batons até finalmente desistir ao perceber que a boca era o menor de seus problemas. O queixo quadrado que, também dividido por uma linha profunda (e igualmente vindo do pai), se projetava adiante num ar desafiador a incomodava muito mais – e não havia maquiagem que pudesse disfarçá-lo. Da mesma maneira, as sobrancelhas grossas, que ela antes domara graças a horas de dor e depilação, agora cresciam sem controle, formando dois severos arcos sobre os olhos verdes que puxara sabe-se lá de quem apenas como uma piada de mau gosto do universo, levando-a a entreouvir, ao longo dos anos, diversas variações do comentário “Que desperdício, aqueles olhos!”.
Não se lembrava de quando chorara pela última vez ao ouvir algo assim. Nem raiva sentia mais; apenas cansaço.
Levantou os olhos do livro e novamente se surpreendeu ao perceber que o escrutínio persistia. Normalmente, àquela altura lançaria um olhar desafiador ao mal educado, mas nesse instante notou algo que a impediu de fazê-lo: seu coração estava disparado.
Experimentou um misto de surpresa e raiva diante da descoberta. Havia sofrido muito até conseguir anestesiar até mesmo seus reflexos involuntários. Não se permitia fantasias românticas ou mesmo reflexões sobre sua solidão.
Nunca tivera um namorado. Mesmo quando mulheres tão ou mais feias que ela encontravam seus pares em homens igualmente pouco atraentes (embora, vez ou outra, um sujeito bonito conseguisse enxergar algo único sob a aparência de uma conhecida desengonçada), ela permanecia sozinha em função de sua altura, que acabava por afastar até mesmo o menos exigente dos rapazes. Em uma única ocasião, tentara tomar a iniciativa e abordar um conhecido do bairro, mas o sorriso de escárnio, seguido pela vergonha de ser ridicularizada junto aos amigos deste, a haviam desestimulado de repetir o esforço. Com o passar dos anos, abandonara a pretensão de ser amada ou desejada. Masturbava-se de quando em quando ao sentir a alfinetada inesperada do desejo, mas não conferia muita atenção àquilo. Sabia de mulheres que tratavam a masturbação como um verdadeiro ritual, acendendo velas, tomando vinho e ligando alguma música, mas para ela, quanto menos tempo gastasse naquilo melhor, já que não conseguia evitar um certo sentimento de humilhação no auto estímulo, como se aquilo fosse o reconhecimento de que os únicos dedos que buscariam seu corpo seriam os seus próprios. Sonhava em atingir um ponto no qual não sentisse mais a necessidade do orgasmo.
Não era uma criatura amarga, contudo. Era capaz de rir e de se divertir com a família e os amigos. Amava os sobrinhos, filhos de seus dois irmãos mais jovens, e adorava ouvi-los dizer a palavra “tia”. Não saía com frequência, mas apenas por estar sempre exausta – e quando o fazia, contava e ouvia casos, gargalhava com piadas e aproveitava o momento como desculpa para crer-se feliz.
Gostava de morar sozinha e agora, aos 42 anos, julgava-se incapaz de dividir o pequeno apartamento com quem quer que fosse – homem ou mulher, amiga ou namorado. Não que corresse qualquer risco de que esta última opção se apresentasse.
Fingiu olhar o relógio e, em seguida, voltou-se sutilmente para onde o homem se sentava.
Sentiu-se profundamente desapontada ao encontrar o banco desocupado. Não o vira descer. Mas também que diferença faria se…
Ele agora sentava-se diretamente à sua frente. Mudara de lugar, atravessando o corredor, para ficar ali, próximo e diante dela.
O sujeito sorriu.
Agora seu corpo reagia enlouquecidamente, como se, após anos de anestesia emocional auto imposta, houvesse se esquecido de como deveria se comportar numa situação como aquela. Se sua mente fosse uma central de comando militar, luzes vermelhas de “Alerta!” estariam piscando rapidamente enquanto todos entravam em modo de pânico.
O coração disparado e o frio na barriga, ela compreendia; a vontade súbita de ir ao banheiro, nem tanto. Sua respiração tornara-se tão forte e os batimentos cardíacos, tão acelerados, que ela temia que ele pudesse perceber seu peito saltando sob a blusa.
O que ele queria, afinal? Era uma aposta feita com colegas que agora riam em algum lugar do vagão? Estudou todos os passageiros ao seu redor e não notou nada de atípico. Todos pareciam perdidos em si mesmos; a única exceção era o homem que a olhava.
Sentiu a blusa grudar em seu corpo com o suor nervoso que agora escorria por suas costas. Percebeu a testa úmida e enxugou-a com o dorso da mão, que em seguida secou na calça jeans escura que vestia. Passara a adotar o preto com frequência em seu vestuário desde que engordara, pois isto permitia que fugisse de roupas largas para gordos e usasse outras mais justas sem que as dobras flácidas de seu abdômen chamassem muito a atenção sob o tecido.
Algo que o suor agora expunha com crueldade através de manchas úmidas horizontais que desenhavam cada pequena banha sob a malha.
Puxou a barra da blusa para baixo e ajeitou-se no assento. Estava cada vez mais incomodada com o olhar do sujeito, mas, ao mesmo tempo, não queria que aquilo acabasse. Não tinha qualquer dúvida, agora: ela era o foco dele e a expressão que nele se apresentava era de… aprovação. Como isto podia ser realidade, não sabia, mas tinha certeza de sua interpretação: ele gostava do que via.
Ajeitou os cabelos e lamentou não ter voltado a pintá-los nos últimos meses. Sabia que não era bonita, mas também não precisava descuidar-se tanto. Aliás, se se esforçasse, poderia até mesmo parecer uns cinco anos mais jovem e isto já seria alguma coisa.
Depois de meses (anos?) sem pensar verdadeiramente em sua aparência, voltava agora a fazê-lo graças a alguns minutos sob o olhar de um estranho. Alguns instintos jamais morriam, pelo visto – por mais que soubesse de seu valor como mulher (mais: como ser humano!) e não se permitisse definir pela míope opinião alheia, agora queria desesperadamente ser aprovada por um indivíduo cuja existência lhe era desconhecida até três ou quatro estações atrás. Seria possível que algo inesperado assim acont…
“Tudo bem?”, ele disse repentinamente, sempre sorrindo.
Ela hesitou. Deveria responder o cumprimento ou fingir (apenas fingir) ignorá-lo? Talvez fosse melhor se
“Tudo”, surpreendeu-se dizendo.
“Posso?”, ele perguntou, apontando para o lugar vazio ao seu lado. Ela acenou com a cabeça, tentando parecer indiferente, mas sabendo que traíra um largo sorriso.
“Meu nome é Ricardo. Você é…?”
Ela respondeu.
“Bonito nome.”
Ela sorriu, ciente de que se tratava de uma mera cortesia. Seu nome não era mais bonito ou feio do que qualquer outro.
“Não sei se notou”, ele prosseguiu, “mas estou te observando há algum tempo.”
“Ah, é?”. Tentou simular surpresa, mas sua voz soou trêmula aos próprios ouvidos.
“É.”
“Hum”. Avaliou se deveria fingir voltar ao livro ou dizer algo. “Por quê?”
“Porque te achei muito interessante.”
Ela permaneceu muda, mas sentiu o coração atingir uma pulsação alta o suficiente para que pudesse escutá-lo ressoar em seu crânio.
“Muito interessante mesmo”, ressaltou o homem.
“Ah.”
“Alguém já deve ter dito isso para você, claro.”
“É.”, ela disse, sem saber o que responder.
“Imaginei.”
O ar no vagão parecia tornar-se rarefeito. Queria sair correndo e também permanecer ali.
Subitamente, um cartão surgiu na mão do sujeito. Ele o estendeu em sua direção e, sem entender muito bem o que ocorria, ela o segurou.
RICARDO MOURA
agente
Ela o encarou sem compreender.
“Sou de uma agência de modelos”, ele explicou. “Mas não uma agência comum. Se as outras agências se preocupam com modelos magras, loiras, que se parecem dublês de Barbie, nós nos especializamos em modelos de carne e osso. Pessoas com rostos reais.”
Ela sentiu o frio na espinha que, velho conhecido, a alertava para mais uma decepção.
“E você é perfeita para um comercial para o qual estamos escalando modelos nesse momento. É uma campanha grande para um clube de férias popular.”
“Popular.”
“Sim.”
“Você quer dizer… para gente feia.”
Ele riu de uma maneira que parecia tentar soar simpática.
“Claro que não. Mesmo porque você não tem nada de feia.”
Ela detectou a brevíssima pausa que denunciava a mentira.
“Popular é só isso: popular. Rostos comuns. Nada de Giseles Bündchens ou atrizes globais.”
Ela fingiu estudar o cartão apenas para não ter que encará-lo e denunciar sua dor.
“Bom… eu desço na próxima estação. Mas fique com meu cartão. Se tiver interesse, me ligue. Acho que tem boas chances de estar no filme. E o cachê é bom: 350 reais por um dia.”
Ele levantou-se e estendeu a mão, que ela apertou sem vontade.
“A gente se fala, espero.”
Dez segundos depois, ela encontrava-se novamente sozinha no vagão em movimento. O queixo tremia e as lágrimas eram contidas apenas pela raiva. Não do tal Ricardo, mas de si mesma, que, tola, mais uma vez permitira-se ser vulnerável à opinião alheia. Ela era melhor do que isso. Independia do mundo.
Ou assim queria pensar.
“Rostos reais” era um eufemismo, sabia. E o seu era o mais real dos rostos.
Ergueu-se e, equilibrando-se em meio aos solavancos do trem, aproximou-se da porta. No vidro, viu refletida a imagem grandalhona e grosseira que jamais aprendera a apreciar.
Olhou novamente para o cartão.
Aparecer na tevê seria tão ruim assim, afinal? Sabia que, no mínimo, isto seria assunto para algumas divertidas conversas com amigos e em reuniões familiares.
Rostos reais.
A porta à sua frente se abriu.
Ela guardou o cartão no bolso traseiro e pisou no chão da estação.